sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

‘Ficha limpa’, justiça e o papel do STF


A constitucionalidade da Lei Complementar 135, batizada de ‘ficha limpa’ deve voltar à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) nos próximos dias, oportunidade em que os ministros votarão a se debruçar sobre o tema considerado bastante controverso por todos, sobretudo pela divisão existente na própria Corte Constitucional.

Fruto da inspiração popular e de essência extremamente importante para o bom exercício da democracia política, a lei ‘ficha limpa’ é um avanço, especialmente no que tange a vedação aos maus políticos, numa demonstração inequívoca de que a sociedade quer fazer sua parte, mudando o atual cenário e respondendo à classe política de que está na hora deles fazerem jus ao papel exercido por cada um deles. Neste sentido, é bom destacar que por inércia do atual Congresso Nacional, deputados e senadores não mais legislam nesse país, cabendo tão somente ao Presidente da República e a própria justiça, o que é uma grande excrescência em uma república tida como democrática.

Muito embora haja um anseio popular e até pessoal de aplicação imediata, juridicamente sua retroação é uma anomalia. Ora, não pode o estado democrático de direito permitir que uma Lei retroaja, ainda mais quando se trata de matéria de pena. Digo pena, pois inelegibilidade não pode nem deve ser interpretada como condicionante para ninguém que, por exemplo, perca o mandato de governador como aconteceu com Cássio Cunha Lima. O caso dele é emblemático, tendo em vista que o período de sua inelegibilidade exauriu em 2009, ou seja, um antes da vigência da novel lei. Assim, neste sentido, o caso do ex-governador paraibano representa, de forma cabal, o exemplo mais eloqüente de alguém que foi punido e que cumpriu resignadamente a pena imposta, conforme prescrevia a época a Lei 64/1990. Do contrário, é fazê-lo cumprir dois períodos de inelegibilidades pelo mesmo motivo que o condenou, o que é inadmissível num país republicano, democrático e fundado em leis.

No mais, outra questão controversa é da suposta colisão com o Princípio de presunção de inocência. Note-se que o disposto no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal — “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” é o preceito basilar desta argumentação. Garantias constitucionais como presunção de inocência, devido processo legal, direito ao contraditório e a ampla defesa, são preceitos fundamentais na sociedade democrática de direito. Não se pode apenar o cidadão por culpa exclusiva da mora do judiciário. A possibilidade de aplicar a pena antes da condenação com transito em julgado é reflexo claro da demora do judiciário em por cabo aos conflitos judiciais no Brasil.

Sabe-se que a jurisprudência do STF indica que a presunção de inocência é, de fato, de extrema importância. Em 2008, o Supremo respondeu negativamente à ação ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros que pretendia dar a juízes eleitorais a prerrogativa de barrar a candidatura dos políticos “ficha suja”. “A presunção da inocência, legitimada pela idéia democrática, tem prevalecido, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, no contexto das sociedades civilizadas, como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana”, segundo o entendimento do ministro Celso de Mello, relator da ação, em voto acompanhado por mais oito ministros.

Vozes contrárias defendem a constitucionalidade da Lei afirmando que se trata de uma punição administrativa e não de uma questão penal. Porém, discordamos frontalmente a essa tese. Embora compreensível o esforço de ver impedida a candidatura de políticos com o passado duvidoso, não se pode atropelar o direito indo da via contrária da justiça.

É chegada a hora da Corte Constitucional salvaguardar a essência de sua existência, a constituição. É a oportunidade em que os ministros, revendo caso a caso e mantendo distância das vozes roucas dos grupos de pressão, poderão restabelecer a ordem das coisas, retomando o foco legalista de suas decisões. O STF precisa e deve encarar o tema a luz do direito e nada mais, explorando a axiologia dos fatos jurídicos, respeitando a soberania da ordem e promovendo a verdadeira justiça, entendendo que é a sociedade que tem o mais eficaz remédio contra os maus políticos. É através do sufrágio universal do voto que cada cidadão brasileiro pode e deve fazer a verdadeira justiça.

Assim sendo, com ou sem‘ficha’ a escolha livre, soberana e justa foi feita em outubro último. E o STF precisa delinear na decisão que tomará sobre o caso o seguinte: ao eleito o voto e a escolha, cabendo tão somente a justiça o papel que lhe é inerente, o de fiscalizar o processo eleitoral e garantir a licitude da festa democrática chamada eleição.

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